domingo, 11 de junho de 2023

SOBRE UMA VOLTA AO PASSADO >> Sandra Modesto

 











Sobre uma volta ao passado.

No final dos anos setenta, minha mãe ficou preocupada e, conversando com uma amiga que vira e mexe estava lá em casa, confessou:

“Não sei o que eu faço com a Sandra, quando ela casar. Ela não sabe nada de dona de casa. Não sabe cozinha. E nem quer aprender. Fico preocupada.”

O que minha mãe queria ouvir era uma concordância e uma ajuda. Mas...

“Jacinta, sua filha é das letras”. Você ainda não entendeu?

Um sol ameno naquele mês de junho. Naquela tarde as duas amigas tomavam chá de canela e comiam biscoito frito de polvilho. O centro da mesa forrada com toalha xadrez, às xícaras esmaltadas, uma moça de 17 anos com mania de ouvir conversa de adulto às escondidas, ligou o rádio, pegou um caderno e escreveu a primeira crônica. Sem saber de gênero literário, sabia apenas que a conversa entre a mãe e dona Luísa, gerou vários pensamentos.

Nos anos oitenta, a filha da dona Jacinta escolheu o curso de Letras.

Pois então...

Ao ver a filha estudando a mãe confessou:

“Filha estuda mesmo. Para ter uma profissão e não depender de dinheiro de marido.”

A vida tem lá seus encantos.  Nesta tarde fria, leio um livro, corro até a cozinha e tomo café forte, com pão de queijo, um bolo de fubá. Quem preparou o café foi meu marido, mãe. Ando muito ocupada. Porque estou preparando o meu novo livro.


domingo, 12 de fevereiro de 2023

SINTONIA >> Sandra Modesto

 SINTONIA

De vez em quando, enquanto meu marido prepara o almoço,
O cheiro do arroz afogado perfumando minha sala, o lugar onde eu pensava:
" Minha crônica!"
Corri à cozinha e, numa caixa de som enorme tocava sintonia. ( Moraes Moreira)
Sim, temos vinil, CD, vitrola e caixa de som amplificada.
A música corria alta. Minha vontade também.
Agarrei meu marido e a gente dançou agarradinhos.
Podia ser uma marchinha de carnaval, né?
Mas abraçar colando o corpo, num roçar pela nuca, cheiro de pele cruzando com alho e cebola, beijo pra arrepiar os 32 anos juntos numa história. Nenhum casamento é perfeito. Mas música, beijo gostoso e um eu te amo nas entrelinhas
...
Não esperem o amor de vocês tomarem a iniciativa.
Agarrem o amor de vocês.
Se possível, ao som de sintonia.
" Que é nesse vai e vem
Nesse vai e vem
Que a gente se dá bem
Que a gente se atrapalha"


segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

ESTRELA


 










ESTRELA

Sandra Modesto

Peguei um bonde ao lado de uma mulher que chorava. O bonde não era um transporte. Uma companhia no meio da rua quieta, numa praça na beira do sol.

Eu tive na minha vida, alguém doce como flocos de algodão, certo dia, talvez no domingo, talvez comendo arroz com alface, talvez um tomate da hortaliça.

Quando eu tinha quatro anos pairando em sorrisos e indagações, a mãe da minha mãe,

Baixou uma lei: “Dos olhos de minha neta não pode cair uma lágrima.”.

De lá pra cá, aprendi a gostar de alface com tomate, mas... Chorei tanto vida a fora.

Hoje eu comemoro entre sorrisos estrelares tudo o que eu conquisto.

Das vitórias do meu filho e da minha filha, do longo segundo casamento, do acalanto do sol, da mudança dos luares.

Estamos em dezembro com sabor de café e doces beijos. Cato algumas memórias populares. Nesse sertão, que vem crescendo entre luzes, asfalto, brilhos, gentes e crendices.

“não pode apontar para o céu com estrelas porque nascem verrugas”.

“Nasceu com estrela na testa tem sorte na vida”

Acordei com vontade de cantar Gilberto Gil.

Porque a vida é pequena pra ser poesia amarga e prosa insossa.

Ah, esses versos que eu amo...

“Há de surgir uma estrela no céu cada vez que ocê sorrir.”

“Há de apagar uma estrela no céu cada vez que ocê chorar.”


quinta-feira, 10 de novembro de 2022

PAI, ESTRAGUEI SUA BANDEIRA >> Sandra Modesto


Podia ter ficado calado, contado e mostrado só pra mãe ou revelar depois, em outro momento, mas, chegou da manifestação, deu de cara com o pai lanchando, todo tranquilo com a mãe, e foi logo dizendo:

- Pai estraguei sua bandeira.

- Ah, não, Gustavo, você não fez isso.

- Fiz pai, mas, foi sem querer, eu colei uma frase com aquela cola forte, pensei que não fosse "tão forte"!

- É depois sai. Com jeitinho pra não rasgar o tecido, calma, senta aí filho, conta:

- Como foi a manifestação?

- A minha bandeira oficial, eu nem acredito, não tenta acobertar o erro dele não, Júlia, ele agiu errado!

- É só mudou a frase, depois se não sair a gente compra outra bandeira, pra tudo se dá um jeito.

- Vocês acham tudo fácil, fácil, dinheiro, então!

- Dá pra brigar depois e ouvir o que o Gustavo tem pra contar sobre a primeira manifestação cidadã, política, de jovem engajado dele, por favor?

Luis se rendeu.

- Tá bom, filho, conta, como é que foi lá? Muita gente?

- Nossa! Muita gente, pai. Organização boa, as reivindicações bem elaboradas, pautas escritas e entregues para o representante do prefeito, pai, ele mandou representante, nem teve coragem de dialogar com a gente pai, é, mas, ele vai ter que levar a sério os nossos pedidos pai, da UFU, da UEMG, da Saúde, o povo tá muito insatisfeito, o atendimento, e os pagamentos dos contratados que não são pagos tem três meses, muita coisa errada, precisando melhorar, pai.

Luis e Júlia se olharam com alegria e orgulho, uma mistura de sentimentos.

Então aquele bebezinho de ontem, já estava virando gente, gente que luta que busca seus direitos e que não abandona o barco.

 "Meu garotão"! Pensou Luis.

Júlia embargou uma voz silenciosa:

“O filho que ensinei a ler, agora, aprendendo lições de Democracia”.

Mais tarde, Gustavo percebeu a porta aberta no quarto dos pais:

- Mãe, eu achei na internet um jeito de tirar cola de tecido, consegui tirar a frase da bandeira, mas rasgou um pouquinho o tecido.

Sorrindo por dentro a mãe disse:

-Ah, tá bom, nem vai dar para notar, filho. Esquece a bandeira, o que você fez hoje, foi muito mais brasileiro.

 

(Baseada em fatos reais e dedicada à turma que participou da manifestação pacífica em Ituiutaba em 2014)

domingo, 6 de novembro de 2022

Água nova brotando e a gente se amando sem parar


 










Depois do dia 30 de outubro, choveu por aqui. O tempo seco que retorcia galhos das árvores frutíferas numa primavera, não deteve nossos sonhos.

Por conta de tudo isso a bola rola para o segundo tempo, e, houve prorrogação.

Sempre aos domingos. Sempre com a esperança, na luta, na pesquisa Datavizinho.

Não existe facilidade. Mas imaginar um sol, uma força pela volta da Democracia, ah, como eu esperei por ela. Foram noites de insônia, manhãs sonolentas e notícias tristes, se eu contar que eu voto no Lula desde 1989, não é ilusão passageira. Eu estou falando sério. Mas estamos em 2022 e a crônica tem que continuar...

Moro numa casa há 13 anos. Vi crescer na família ao lado, duas crianças. Ana e o irmão. À medida que foram crescendo eu me sentia a avó que ainda não sou. Minha pesquisa no primeiro turno foi ao modo “O que será que será?”.

_ E aí, galera como está os votos por aí?

_ Na nossa família tudo é Lula.

Ao ouvir tanta doçura meu marca- passo fez baticum dentro do peito.

Há uma semana por essas horas eu já tinha votado. Preferi não acompanhar a apuração pelo Twitter.

Foi pela TV, bem acompanhada por quem esteve comigo: Marido e filho.

A gente preferiu o amor, a gente se abraçou, a gente gritou: “É Lula Porra”!

Desde então o meu café é forte com é forte o fole da sanfona, as cordas do violão, o toque do pandeiro, a fé na vida e muitos petiscos com queijo ou o que mais cada um quiser comprar. Porque vai!


segunda-feira, 24 de outubro de 2022

VILA DESPEDAÇADA >> Sandra Modesto

 Vila Despedaçada

Eu morava distante da Vila. Quando a cidade amanhecia, minha vida puxava caminhos diante do ângulo juvenil.

Uma professora meio perdida no magistério sonhador. Sempre um anseio em não ser igual ao que era imposto pelo início dos anos oitenta.

E, enquanto o Brasil era medo, minha cidade alimentava em mim, planos a médio tempo. Tudo corria em construção. Tudo.

Mas comecei a entender os cortes dos sonhos, por frestas dos caminhos na cidade, na época, com oitenta mil habitantes. No embate e interrogações da Ditadura Militar.

Tive que chorar com o acontecimento na vila Natal, dia seis de abril de 1984.

Era noite. Um prenúncio de lua na ponta do céu. Apressei meus passos porque o meu descanso era sempre um banho com água escorrendo na nuca, mesmo sabedora de uma mulher mãe. Abri o portão apressadamente.

 Cheguei e vi meu pai, minha mãe, minhas irmãs se olhando. Num abril morno, impreciso. Diante do caos, minha filha pedindo o afago de sempre, abracei- a para desapertar a crueza da vida.

Conferindo os rumos pelos quais muita gente desaparece, mastiguei pouco a pouco os sinais dos sofrimentos.

Numa cidade agrícola, oito mil habitantes trabalhavam na colheita de algodão.

 De repente, reportagem completa pela TV, a manchete estatelada no jornal impresso de circulação nacional.

Era a vila se aproximando de mim, situando em meus vinte e quatro anos o que era ter privilégio e o que era ser pobre.

As notícias sendo atualizadas. O número de desaparecidos subia. Corpos sendo reconhecidos. Famílias velando seus amores numa mesma sala.

O espaço foi pouco. O ritual da despedida expandiu – se pela escola pública mais perto. Morte espalhada.

A pobreza foi um prato frio que desceu na Vila Natal.

Trinta e oito anos depois, a vila já é Bairro. Moro próximo a ele.

Mas a vila desse meu lugar é um troço que me engasga. Pedaços por pedaços.

 

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NOVO LIVRO >> Sandra Modesto

 O TEMPO DA GENTE Começou a pré-venda do meu livro de poesias. A capa mais lindo do mundo! É só conferir...