Eu enfiava a cara no trabalho. Trabalhava mesmo. A sopinha pronta da Nestlé, não perdia tempo com esse negócio de comida caseira. As fraldas descartáveis, o iogurte que ajudava no crescimento, a camiseta de grife, o bife de filé. Por isso eu enfiava a cara no trabalho. A dona Cida babá das crianças do mesmo prédio que eu, me olhava de um jeito como se perguntasse por que eu não parava em casa. Se eu não enfiasse a cara no trabalho, eu não moraria naquele prédio. Meus filhos em escola pública? Nem pensar. E a bola cara para jogar com os amiguinhos ricos, é por isso. Enfiei muito a cara no trabalho. Minha filha fazia inglês na Cultura Inglesa. Currículo impecável. Valia a pena pagar esses privilégios. Ah daqui a pouco eu vou trabalhar, amanhã eu vou trabalhar. 32 anos assim nessa labuta. É noite. Na tela da TV, o jogo do flamengo. Fico plantada com a bunda no sofá vendo o jogo.
Esse time sempre ganha?
Meu filho e meu marido gritam gooool como se o
mundo fosse acabar.
Abandono o clima. Desligo o ar condicionado e
pego o celular pra falar com a filha. Ela mora em outra cidade e trabalha numa
multinacional por causa do tempo em que eu enfiava a cara no trabalho. Vou
dormir rolando na cama comprada em dez prestações. Meu marido trabalha em duas
escolas públicas. A gente mora numa casa alugada. É tão bom morar aqui. O Chico
late muito alto como se cantasse Caetano. Ao acordar depois da noite vadia que
invadiu meu sono, vou ao supermercado encher meio carrinho de compras. A dona
Cida está velha. Não me reconheceu. Ela tentando comprar uma cartela de ovos, e
os olhos famintos chegavam a brilhar. O moço anunciando a promoção do frango, da
alcatra e do coxão mole. Meus olhos
reviveram a dona Cida quando ela enfiava a cara no prédio, brincando com os
filhos da patroa. Ela nunca teve tempo para cuidar das filhas que ficavam na
creche enquanto ela acarinhava Davi e Laura. Daqui a pouco tem futebol na TV.
Hoje eu comemoro meu próprio gol. O grito feliz por não morrer de tanto
trabalhar. Meu filho me conta da atual namorada: Elisa. A Elisa que tem uma
irmã chamada Rita, um pai desconhecido e a mãe se chama Maria Aparecida. Meu filho Disse que vai ao churrasco do
aniversário da mãe de Elisa. Ele levou cervejas. A picanha e o filé de frango
eu comprei pra dona Cida.
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