sábado, 27 de novembro de 2021

Crônica de Sandra Modesto

 CENAS DE NOVEMBRO

Um copo cheio de água é a única inspiração do dia. Palavras escorrendo goela abaixo escuto o apito da escola no quarteirão da minha rua, aulas presenciais no último bimestre.

Atravesso quarteirões com minha roupa justa e o sol batendo no pedaço de rosto, nas costas, braços, colo. De repente, respingos de chuva bêbados prenunciando o verão.

Nesse quase dezembro meio doído.

Algumas dúvidas carregam suportáveis restos.

Meu olhar segue pelas avenidas. O moço passa por mim, sem máscara. “Essa gente sem proteção”. Sinto-me uma estranha querendo julgar as pessoas.

Envolta nessas intrigas, fiz uma rápida filmagem artesanal das horas em que chorei e prossegui.

No boteco da esquina, uma confraria sagrada de homens, bebe cerveja. Passo por perto.

A chave do portão enfia na fechadura.  Reabro minhas intenções.  Falta pouco, muito pouco pra eu segurar o tempo. Banho frio relaxando nuca, libido acesa descendo por todo o corpo. Afago meus cabelos brancos numa lentidão proposital.

São sete horas da noite. O vendedor de abacaxi interrompe minha escrita. “Duas por oito reais, docinhas”. Compro. Eu, que nem gosto de abacaxi. Mas o moço tinha razão.

Vou dormir ao som imaginário de um show ao ar livre.

Desperto sem hora marcada sem correria sem frenesi.

Quando a fumaça do café se espalha pela cozinha, viro a privilegiada arrumando o desjejum de tudo o que eu gosto. Uma luz natural atravessando a janela e a porta, um vulto de mulher me assusta pelo vidro da mesa. Sou eu.

Ainda não é tempo de abraçar um mundaréu de gente, ainda conversamos com máscaras, às vezes sorrimos com os olhos. Há lirismo nesses dias despedaçados.

Uma dança com leves sonetos / eu quero escrever / depois do vendaval.

 

domingo, 14 de novembro de 2021

NA FILA DO OSSO >> Sandra Modesto

 Eu enfiava a cara no trabalho. Trabalhava mesmo. A sopinha pronta da Nestlé, não perdia tempo com esse negócio de comida caseira. As fraldas descartáveis, o iogurte que ajudava no crescimento, a camiseta de grife, o bife de filé. Por isso eu enfiava a cara no trabalho. A dona Cida babá das crianças do mesmo prédio que eu, me olhava de um jeito como se perguntasse por que eu não parava em casa. Se eu não enfiasse a cara no trabalho, eu não moraria naquele prédio. Meus filhos em escola pública? Nem pensar. E a bola cara para jogar com os  amiguinhos ricos, é por isso. Enfiei muito a cara no trabalho. Minha filha fazia inglês na Cultura Inglesa. Currículo impecável. Valia a pena pagar esses privilégios. Ah daqui a pouco eu vou trabalhar, amanhã eu vou trabalhar. 32 anos assim nessa labuta. É noite. Na tela da TV, o jogo do flamengo. Fico plantada com a bunda no sofá vendo o jogo.

Esse time sempre ganha?

Meu filho e meu marido gritam gooool como se o mundo fosse acabar.

Abandono o clima. Desligo o ar condicionado e pego o celular pra falar com a filha. Ela mora em outra cidade e trabalha numa multinacional por causa do tempo em que eu enfiava a cara no trabalho. Vou dormir rolando na cama comprada em dez prestações. Meu marido trabalha em duas escolas públicas. A gente mora numa casa alugada. É tão bom morar aqui. O Chico late muito alto como se cantasse Caetano. Ao acordar depois da noite vadia que invadiu meu sono, vou ao supermercado encher meio carrinho de compras. A dona Cida está velha. Não me reconheceu. Ela tentando comprar uma cartela de ovos, e os olhos famintos chegavam a brilhar. O moço anunciando a promoção do frango, da alcatra e do coxão mole.  Meus olhos reviveram a dona Cida quando ela enfiava a cara no prédio, brincando com os filhos da patroa. Ela nunca teve tempo para cuidar das filhas que ficavam na creche enquanto ela acarinhava Davi e Laura. Daqui a pouco tem futebol na TV. Hoje eu comemoro meu próprio gol. O grito feliz por não morrer de tanto trabalhar. Meu filho me conta da atual namorada: Elisa. A Elisa que tem uma irmã chamada Rita, um pai desconhecido e a mãe se chama Maria Aparecida.  Meu filho Disse que vai ao churrasco do aniversário da mãe de Elisa. Ele levou cervejas. A picanha e o filé de frango eu comprei pra dona Cida. 

Biblioteca virtual do Elicer Minas

https://elicer.com.br/_escritores/sonhos-e-perdas-e-outros-contos/