domingo, 31 de outubro de 2021

Naquela mesa >> Sandra Modesto

 Daqui a dois meses, no dia 31 de dezembro do ano estarrecido, corroído no vazio de muitas famílias, como cantar em coro, adeus ano velho feliz ano novo?

O ano velho levou para sempre, os que  não estarão na última festa.

Dá pra dizer feliz ano novo olhando a mesa incompleta? Cadeiras vazias, olhares disfarçados tentando os risos fracos. Porque a vovó não está ali, o avô, as tias, os tios, a amiga, o amigo.

A professora que contou histórias, as conversas marcantes, agora distantes demais.

Elas e eles viraram covas. Nas seiscentas e sete mil vidas perdidas, seria espanto, reforçar que quatrocentos mil pessoas poderiam estar vivas? Por isso meu bem, no último dia de dois mil e vinte um, recolha sua dor, não ignore a miséria do Brasil, saboreie devagar ao comer pedaços de lombo assado, lembre- se das pessoas comendo osso, catando comida no lixo, e se puder, assuma sua estranha paixão pela vida.

Naquela mesa incompleta. O forro branco escorrendo pelos cantos.

O feliz ano novo será meio assim, implacável na canção destoada. Feliz ano novo?

Não. Cada um vai chorar em silêncio

E recolher as sobras das saudades.

 ( Crônica publicada hoje, no site: Crônica do dia)

domingo, 24 de outubro de 2021

ELE ESTÁ CHEGANDO>> Sandra Modesto


 










Faltam dois meses. Apenas dois meses para o tradicional, nem sempre amado, arroz com passas.

A farofa, o peru, o feijão tropeiro, mas eis que colocam à mesa, o arroz.

Retiro as passas uma por uma as escondida. A discussão é: Arroz, com ou sem passas?

Feijão tropeiro ou tutu de feijão? Tutu é mais mineiro, gostoso, mas exige talento culinário.

Epa! Eu não sei fazer. Minha tia sabe. Aquela tia que domina essa arte. Cozinhar é uma arte. Essa arte eu admiro.

Daí vem o peru. Deixa-o pra lá. O povo, esse povo invisível, está passando fome. O melhor presente para as pessoas famintas é uma boa cesta básica. Porque precisamos entender a fome do outro. E ajudar. Com ou sem passas. Com carne. Porque a fila do osso está aumentando.

Em algumas regiões do país, relemos Manuel Bandeira. Poeta pernambucano, ele retratou a miséria brasileira em 1946. “O bicho” voltou.

“Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos

 

Quando encontrava alguma coisa

Não examinava nem cheirava

Engolia com voracidade

 

O bicho não era um cão

Não era um gato

Não era um rato

 

O bicho, meu Deus.

 

“Era um homem.”

 

Façamos da nossa ceia de natal, uma noite possível. Afinal, o almoço do dia 25, serão as sobras do que restou, a gente esquenta e come. E haja remédios caseiros ou industriais para melhorar a dor de cabeça do porre.

Bom domingo pra vocês. Eu volto depois do natal. Beijão! Usem máscara, vacinem, cuidem- se. E cuidem dos seus.

 

 


domingo, 3 de outubro de 2021

SOB UM SOL DE NEBLINA>>> Sandra Modesto


 





Acordei mergulhada em lembranças da casa onde vivi.  Resolvo visitar a antiga morada. Por muito tempo eu fui menina, em pouco tempo eu cresci. Por longos instantes densos, frívolos e fortes, permaneci intacta. Tanto tempo que eu nem sei encantar. Entrei aos treze e deixei aos trinta. Minha casa feita de sonhos, de esconderijos. Silêncios e vazios ocultos. Quais são os espaços estranhos e nem assim, em vão, fizeram meu coração dilacerar e correr para casa da avenida vinte e sete?

 Em busca dos restos eu caminhei por algumas horas, vagarosa com jeito entre a curva do meu corpo sem juventude. Esperei avistar uma moradia antiga. Mas houve desesperança. Sabe minha casa? Não tem mais cores fortes na entrada, nem rede, aumentaram a construção. Quando observei um cômodo pequeno onde meu pai recebia as pessoas velhas necessitadas em busca do caminho da aposentadoria, onde a gente colocava uma garrafa de café, biscoitos fritos e pão de queijo quentinho...

Ah, o velho aconchego virou um escritório Estranho, sem vida, portas fechadas e sem harmonia.

Uma chuva ameaçou meu passeio ao passado. Veio-me à memória aquela menina medrosa, minha mãe dizendo que se o sol se fecha, os respingos choram na terra. Por isso que eu sempre gostei de luz natural. Eu sou solar. Rasgada de amor por histórias do amanhecer. Se a noite chega eu me fecho e a insônia ameaça. Mas adormeço em presságios e aponto uma sutil alegria ao acordar. 

Entendo que a casa do passado está apenas nos meus álbuns de fotos antigas.

Abracei minha vida do agora. Numa cidade onde passa um rio, um povo esperançado, sem muitas oportunidades, ás vezes escorregando lá, de repente, sorrindo ali.

Aqui eu quero morrer.

Mas sem neblinas.

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