domingo, 19 de outubro de 2025

Revista O Bule: Certo dia...

Revista O Bule: Certo dia...: Dedicado aos colegas escritores brasileiros que, apesar dos pesares, fazem a literatura brasileira contemporânea.   Por Krishnamurti Góes...

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

domingo, 18 de maio de 2025

Por enquanto, outono

 


Os sóis dos domingos dessa estação me levam a vaguear. Visto minha calça legging, uma blusa confortável, nos pés, tênis e meias para o meu passeio pelas ruas próximas.

 Resolvo caminhar pela praça. Subo a rampa, desço pela escada, na verdade, uma atividade física gostosa. Olho a decoração grafitada, admiro a arte exposta. Quem passa, limpa a câmera do celular e registra a arte de rua. É o bairro Natal. Bairro de periferia. 

E assim, sigo meu caminho com o sol tímido, meus passos fortes e a suavidade da vida que eu invento. Talvez recriar seja o verbo mais certeiro na minha caminhada. Passo perto de uma turma de garotos jogando bola. Observo. Tinha um garoto sem camisa e com uma calça de malha surrada. Alto, magro. Bonito, a pele brilhava diante do sol. Tinha um baixinho com camiseta e bermuda.

E mais uns três, mas o diálogo, a conversa entre eles prendeu minha atenção.

 “E o Vinicius, hein”?

 “Pois é”.

­_ Ou, o Vinícius era louco. Pô, que saudades daquele tempo!

_ Bons tempos! Né? Bons tempos. Tempos que não voltam mais.

Fiquei intrigada. Os meninos, pela aparência, tinham de 13 a 16 anos.

E já tinham saudades do passado?

O que será que aconteceu com Vinicius? Mudou de cidade? Morreu? Foi preso?

Sim, foi tão importante que está preso nas memórias da turma. E marcou um golaço no meu domingo de outono.

É hora do café forte, sem açúcar. Mas com afeto.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

NAQUELA ESTAÇÃO>> Sandra Modesto

 Naquela estação

Eu tinha 15 anos e uma noite perdida no tempo. Era inverno, era uma festa de despedida na escola. Quase todos me notaram e senti que era por causa da minha roupa. Meu collant branco com mangas compridas, uma calça de brim azul e um par de seios eriçados. Pedro me tirou para dançar, o amigo de meu pai que estava passando uns dias lá em casa. Tocava violão. Eu gostava quando ele cantava.

 Mas na noite da minha primeira liberdade eu flutuava na pista de dança, um moço de olhos azuis, cabelo cacheado com perfil de boa pinta, dançou comigo, me puxou até o fim do corredor, lascou um beijo na minha boca, passeou a língua na minha acreditando que podia tudo, e foi tocando meu corpo. Eu fugi. Catei minhas forças até chegar ao bar da esquina.

“Seu Ernesto, tem caipirinha?”

“E você bebe, menina?”

“Não sei.”

Cheguei antes das onze, minha mãe dormindo no sofá, o aparelho de TV ligado sozinho pelo canto. No meu quarto eu limpei minha boca, não pelo gosto do álcool, sim por causa do beijo que eu não pedi.

No café da manhã eu cantava em silêncio e rezava para o Pedro ir embora.

Meu tio pegou a gaita como sempre o fazia.  Entoando uma canção ao amanhecer, nas tardes cabíveis e em noites chuvosas.

Pedro vai embora amanhã. Tomara que não volte nunca mais.

Nesses anos quando a vida sopra, perdi meu tio, minha mãe foi velada na sala da nossa casa, eu tenho dois filhos. E meu pai, também morreu. Antes da minha mãe.

É quase verão. A foto dos meus pais está rasgada, porque estava num álbum e, abruptamente, eu puxei.

Acordei quando minha coluna fez um estalo: crec!

Meus filhos querem almoçar.

Por que eles sentem tanta fome?

A pia amontoada de louças. Minha coluna não está tão ereta e tomei um analgésico para engolir a dor.

É cada história presa nessa vida. Por isso eu conto.

“Mãe, você escreve?”

“Escrevo. Só não gosto de cozinhar.”

 Eu escrevo porque leio, viu?

Vinícius me olhou, balançou suavemente a cabeça, entrou no quarto, fechou a porta com uma placa: Não enche.

Vitória foi estudar com a namorada.

E muitos anos se passaram. Afonso, o último a entrar na história, me encanta com uma canção de amor.

Depois de trinta e cinco anos juntos num mesmo lar, nem sempre doce, a gente ainda se amava. É um caso de amor em meio a janeiros sorrateiramente manso e forte.

Soube que o seu Ernesto toca um bar na praça da cidade. Com uma clientela fiel. E tem caipirinha. Mas ele já tá velho demais pra vida noturna.

A escola fechou. Num estalo tudo muda no corpo, na vida. Na varanda, deslizo meu corpo no chão como uma menina. Aquela menina de 15 anos me abraça.

Pedi uma cerveja no bar da esquina. Espero não chorar sozinha igual minha mãe quando cortava cebolas.


Revista O Bule: Certo dia...

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