sexta-feira, 4 de abril de 2025

NAQUELA ESTAÇÃO>> Sandra Modesto

 Naquela estação

Eu tinha 15 anos e uma noite perdida no tempo. Era inverno, era uma festa de despedida na escola. Quase todos me notaram e senti que era por causa da minha roupa. Meu collant branco com mangas compridas, uma calça de brim azul e um par de seios eriçados. Pedro me tirou para dançar, o amigo de meu pai que estava passando uns dias lá em casa. Tocava violão. Eu gostava quando ele cantava.

 Mas na noite da minha primeira liberdade eu flutuava na pista de dança, um moço de olhos azuis, cabelo cacheado com perfil de boa pinta, dançou comigo, me puxou até o fim do corredor, lascou um beijo na minha boca, passeou a língua na minha acreditando que podia tudo, e foi tocando meu corpo. Eu fugi. Catei minhas forças até chegar ao bar da esquina.

“Seu Ernesto, tem caipirinha?”

“E você bebe, menina?”

“Não sei.”

Cheguei antes das onze, minha mãe dormindo no sofá, o aparelho de TV ligado sozinho pelo canto. No meu quarto eu limpei minha boca, não pelo gosto do álcool, sim por causa do beijo que eu não pedi.

No café da manhã eu cantava em silêncio e rezava para o Pedro ir embora.

Meu tio pegou a gaita como sempre o fazia.  Entoando uma canção ao amanhecer, nas tardes cabíveis e em noites chuvosas.

Pedro vai embora amanhã. Tomara que não volte nunca mais.

Nesses anos quando a vida sopra, perdi meu tio, minha mãe foi velada na sala da nossa casa, eu tenho dois filhos. E meu pai, também morreu. Antes da minha mãe.

É quase verão. A foto dos meus pais está rasgada, porque estava num álbum e, abruptamente, eu puxei.

Acordei quando minha coluna fez um estalo: crec!

Meus filhos querem almoçar.

Por que eles sentem tanta fome?

A pia amontoada de louças. Minha coluna não está tão ereta e tomei um analgésico para engolir a dor.

É cada história presa nessa vida. Por isso eu conto.

“Mãe, você escreve?”

“Escrevo. Só não gosto de cozinhar.”

 Eu escrevo porque leio, viu?

Vinícius me olhou, balançou suavemente a cabeça, entrou no quarto, fechou a porta com uma placa: Não enche.

Vitória foi estudar com a namorada.

E muitos anos se passaram. Afonso, o último a entrar na história, me encanta com uma canção de amor.

Depois de trinta e cinco anos juntos num mesmo lar, nem sempre doce, a gente ainda se amava. É um caso de amor em meio a janeiros sorrateiramente manso e forte.

Soube que o seu Ernesto toca um bar na praça da cidade. Com uma clientela fiel. E tem caipirinha. Mas ele já tá velho demais pra vida noturna.

A escola fechou. Num estalo tudo muda no corpo, na vida. Na varanda, deslizo meu corpo no chão como uma menina. Aquela menina de 15 anos me abraça.

Pedi uma cerveja no bar da esquina. Espero não chorar sozinha igual minha mãe quando cortava cebolas.

*

Sandra Modesto, 63 anos, Avenida 33, número 1304, setor sul, Ituiutaba, MG. Professora e escritora.

 

terça-feira, 18 de março de 2025

SANTA IRACEMA >> Sandra Modesto

 Santa Iracema

Na reza de todos os dias, tudo era para o povo de uma pequena cidade.

Uma mulher benzedeira, algumas dores, quando tudo se encolheu, a terra distante abasteceu-se de histórias de todos os cantos.  

 “Vó! De novo? Reza comigo, fia. E pega o terço”. Maria bocejava e obedecia.

Em Santa Iracema era assim. Às seis horas da tarde tudo era sagrado. O povo parava para ligar o rádio e todo santo dia, a ladainha espalhava-se no pequeno vilarejo. As famílias crentes numa fé na cura de todas as dores. Produziam alimentos com vontade. Hortas nos quintais, folhas de alface que serviam para acalmar, couve, e muito funcho porque cólicas dos bebês nascidos ali, o chá sossegava o sono, o choro, aliviava o cansaço das mães. Vó Cândida era pura devoção. Além do terço, frequentava o pai de santo, entendia Deus como semelhança das gentes de Santa Iracema. Mal o sol se entendia pela janela, toda a vizinhança se achegava feito colcha de retalhos cobrindo a encruzilhada da vida.

Aos poucos muitas pessoas deixavam o vilarejo. Maria também.

E o tempo corria. MAS “fazer o quê”? Cada um tem um dom de ser livre, voar e, talvez, voltar. Surpreender, contar muito com poucas palavras. Sem afogar a memória.

“Bença, Vó”.

Todas as noites longe de Santa Iracema, Maria falava um tiquinho com a avó. Cândida abençoava sempre. Escondia as saudades da menina sem mãe, pai desconhecido, porém, coberta de amor pela doçura de um viver.  Com afetos e o céu alumiando, no sobe e desce de cada amanhecer. O vilarejo tomou novos ares. Pessoas novas indo embora, pessoas mais velhas segurando os nós de quem ficava.

O doce feito no tacho, a banha do porco, as hortaliças frescas nos arredores de Santa Iracema. No estalar de dedos, os anos romperam-se... Teresa entrou na história de Maria.  

Era muito tarde, quando na porta, vó Cândida ouviu três batidas. Lentamente os passos conseguiram abrir a porta de madeira.

 Maria foi assuntando sobre a visitante.

 Sabe vó, vim te apresentar , Teresa.

Sem responder com palavras, apenas o abraço foi o suficiente.

Risadas pelo ar. Jantar com sabor regado por tanta coisa gostosa.

Naquela noite, o céu tinha um azul meio sonolento. Meio cansado, talvez, anunciava um adeus.

Maria olha dona Cândida observando a doce forma daquela ligação de tantos momentos. Antes do fim, Cândida sorriu para Maria e Teresa.

Quando o sol desencantou o brilho, Santa Iracema perdeu o encanto.

Duas mulheres esperavam o trem na estação mais próxima.  

O tempo não corta tudo. Resiste a cada instante. Porque dança, enlaça, costura infinitos afetos.

Seria isso o coração pulsando? Um abraçar permeado nas expressões.

“Vó”! “Fia”!


domingo, 29 de dezembro de 2024

Naquela mesa >> Sandra Modesto

 Naquela mesa

Os dezembros não são os mesmos desde a Pandemia. No dia 31 de dezembro do ano estarrecido, corroído no vazio de muitas famílias, como cantar em coro, adeus ano velho feliz ano novo?

O ano velho levou para sempre, os que  não estarão na última festa.

Dá pra dizer feliz ano novo olhando a mesa incompleta? Cadeiras vazias, olhares disfarçados tentando os risos fracos. Porque a vovó não está ali, o avô, as tias, os tios, a amiga, o amigo.

A professora que contou histórias, as conversas marcantes, agora distantes demais.

Elas e eles viraram covas. Nas setecentas mil vidas perdidas, seria espanto, reforçar que quatrocentos mil pessoas poderiam estar vivas? Por isso meu bem, no último dia de todos os anos, recolha sua dor, não ignore a miséria do Brasil de 2019/2022. Saboreie devagar ao comer pedaços de lombo assado, lembre- se que durante o governo do inelegível, pessoas enfrentaram a fila do osso. Cataram comida no lixo.

E se puder, assuma sua estranha paixão pela vida.

Naquela mesa incompleta. O forro branco escorrendo pelos cantos.

O feliz ano novo será meio assim, implacável na canção destoada. Feliz ano novo?

Não. Cada um vai chorar em silêncio

E recolher as sobras das saudades.

domingo, 16 de junho de 2024

Bento

 

BENTO

 

As noites de Ana eram sempre iguais desde criança quando ainda sonhava em colocar perna na boneca quebrada. O pai entrava no quarto, deitava na cama e beijava Ana com a língua. Apalpava os seios, feito o cara chamado tarado. Pelo menos, era esse o nome que as meninas da quarta série primária da escola da vila ouviam pelos corredores na rispidez do recreio: “Olha, o tarado pega na bundinha da gente, e põe o negócio duro pra fora, cuidado.”.

Aos 15 anos, a menina desejou comer manga verde com sal.

A avó lembrou-se do genro pelas madrugadas, o diabo rondava no coração daquele monstro. Era lá, onde o inferno morava. Ana agora olhava para o berço do menino. Odiava a barriga esticando mês a mês.

Não era esse o sonho. Se um dia tivesse filho o nome seria Bento.

As manhãs entremeadas por longos silêncios.

Um verão covarde. Assim como a existência desse mundo.

A avó estendia roupas num quintal sujo.

Pisando no meio adeus, a menina pegou o revólver na gaveta do pai.

O berço, os peitos cheios de leite. Uma santa quebrada. Dois tiros.

No dia seguinte, a notícia no primeiro bloco do programa Chumbo Grosso.

– Tudo bem, filha?

– Tudo.

A mãe desnorteada cobriu o corpo da filha.

E lavou o corpo com o sangue.

 


domingo, 21 de janeiro de 2024


 










Quarto turno

Eu soube há pouco tempo a respeito de um campeonato de ioiô.

Era uma tarde quase no final, mas o café esfriava, enquanto eu era apenas uma senhora de pernas pro ar escolhendo um filme para assistir.

De repente uma num voz de um jovem com mais de 1,90 cm:

“Mãe, você sabe onde vende ioiô”? Eu preciso muito.

_ Espera aí. Na lojinha da esquina tem. Chegando à lojinha, que vende tudo, o diálogo:

Moça tem ioiô?

Tem. É bom, né? Criança gosta. (risos). Se ela soubesse a idade de quem queria...

Na volta pra casa, já fui avisando.

Eu achei. Vai comprar.

Ele chegou e, parecia uma criança com o brinquedo enrolado nos dedos fazendo mil malabarismos. Observei a cena.

_ Mãe, eu participava de campeonatos de ioiô quando eu era criança. Venci muitos. Não lembra? A gente morava no bairro Junqueira, eu brincava na rua, um cara organizava os campeonatos, a molecada se divertia muito.

_ Não me lembro.

Ah, mãe, é porque, na época, você trabalhava quatro turnos.

Ele continuou brincando. Eu olhei para o tempo. Arrebatada com a descoberta do quarto turno. Sim, eu trabalhava o primeiro turno, o segundo turno, o terceiro turno. O quarto, bem, esse era o turno quando eu chegava à minha casa, organizava as tarefas domésticas, verificava tarefas escolares.

Cenários desse trabalho invisível, não remunerado, que a gente faz.

Por isso, atualmente, eu tenho a preguiça como uma grande companheira.

Daqui a 5 dias meus 63 anos vão chegar. Vou abrir a porta com um bolo da padaria.


segunda-feira, 4 de setembro de 2023

NAQUELA ESTAÇÃO>> Sandra Modesto

  Naquela estação Eu tinha 15 anos e uma noite perdida no tempo. Era inverno, era uma festa de despedida na escola. Quase todos me notaram e...