domingo, 18 de maio de 2025

Por enquanto, outono

 


Os sóis dos domingos dessa estação me levam a vaguear. Visto minha calça legging, uma blusa confortável, nos pés, tênis e meias para o meu passeio pelas ruas próximas.

 Resolvo caminhar pela praça. Subo a rampa, desço pela escada, na verdade, uma atividade física gostosa. Olho a decoração grafitada, admiro a arte exposta. Quem passa, limpa a câmera do celular e registra a arte de rua. É o bairro Natal. Bairro de periferia. 

E assim, sigo meu caminho com o sol tímido, meus passos fortes e a suavidade da vida que eu invento. Talvez recriar seja o verbo mais certeiro na minha caminhada. Passo perto de uma turma de garotos jogando bola. Observo. Tinha um garoto sem camisa e com uma calça de malha surrada. Alto, magro. Bonito, a pele brilhava diante do sol. Tinha um baixinho com camiseta e bermuda.

E mais uns três, mas o diálogo, a conversa entre eles prendeu minha atenção.

 “E o Vinicius, hein”?

 “Pois é”.

­_ Ou, o Vinícius era louco. Pô, que saudades daquele tempo!

_ Bons tempos! Né? Bons tempos. Tempos que não voltam mais.

Fiquei intrigada. Os meninos, pela aparência, tinham de 13 a 16 anos.

E já tinham saudades do passado?

O que será que aconteceu com Vinicius? Mudou de cidade? Morreu? Foi preso?

Sim, foi tão importante que está preso nas memórias da turma. E marcou um golaço no meu domingo de outono.

É hora do café forte, sem açúcar. Mas com afeto.

sexta-feira, 4 de abril de 2025

NAQUELA ESTAÇÃO>> Sandra Modesto

 Naquela estação

Eu tinha 15 anos e uma noite perdida no tempo. Era inverno, era uma festa de despedida na escola. Quase todos me notaram e senti que era por causa da minha roupa. Meu collant branco com mangas compridas, uma calça de brim azul e um par de seios eriçados. Pedro me tirou para dançar, o amigo de meu pai que estava passando uns dias lá em casa. Tocava violão. Eu gostava quando ele cantava.

 Mas na noite da minha primeira liberdade eu flutuava na pista de dança, um moço de olhos azuis, cabelo cacheado com perfil de boa pinta, dançou comigo, me puxou até o fim do corredor, lascou um beijo na minha boca, passeou a língua na minha acreditando que podia tudo, e foi tocando meu corpo. Eu fugi. Catei minhas forças até chegar ao bar da esquina.

“Seu Ernesto, tem caipirinha?”

“E você bebe, menina?”

“Não sei.”

Cheguei antes das onze, minha mãe dormindo no sofá, o aparelho de TV ligado sozinho pelo canto. No meu quarto eu limpei minha boca, não pelo gosto do álcool, sim por causa do beijo que eu não pedi.

No café da manhã eu cantava em silêncio e rezava para o Pedro ir embora.

Meu tio pegou a gaita como sempre o fazia.  Entoando uma canção ao amanhecer, nas tardes cabíveis e em noites chuvosas.

Pedro vai embora amanhã. Tomara que não volte nunca mais.

Nesses anos quando a vida sopra, perdi meu tio, minha mãe foi velada na sala da nossa casa, eu tenho dois filhos. E meu pai, também morreu. Antes da minha mãe.

É quase verão. A foto dos meus pais está rasgada, porque estava num álbum e, abruptamente, eu puxei.

Acordei quando minha coluna fez um estalo: crec!

Meus filhos querem almoçar.

Por que eles sentem tanta fome?

A pia amontoada de louças. Minha coluna não está tão ereta e tomei um analgésico para engolir a dor.

É cada história presa nessa vida. Por isso eu conto.

“Mãe, você escreve?”

“Escrevo. Só não gosto de cozinhar.”

 Eu escrevo porque leio, viu?

Vinícius me olhou, balançou suavemente a cabeça, entrou no quarto, fechou a porta com uma placa: Não enche.

Vitória foi estudar com a namorada.

E muitos anos se passaram. Afonso, o último a entrar na história, me encanta com uma canção de amor.

Depois de trinta e cinco anos juntos num mesmo lar, nem sempre doce, a gente ainda se amava. É um caso de amor em meio a janeiros sorrateiramente manso e forte.

Soube que o seu Ernesto toca um bar na praça da cidade. Com uma clientela fiel. E tem caipirinha. Mas ele já tá velho demais pra vida noturna.

A escola fechou. Num estalo tudo muda no corpo, na vida. Na varanda, deslizo meu corpo no chão como uma menina. Aquela menina de 15 anos me abraça.

Pedi uma cerveja no bar da esquina. Espero não chorar sozinha igual minha mãe quando cortava cebolas.


terça-feira, 18 de março de 2025

SANTA IRACEMA >> Sandra Modesto

 Santa Iracema

Na reza de todos os dias, tudo era para o povo de uma pequena cidade.

Uma mulher benzedeira, algumas dores, quando tudo se encolheu, a terra distante abasteceu-se de histórias de todos os cantos.  

 “Vó! De novo? Reza comigo, fia. E pega o terço”. Maria bocejava e obedecia.

Em Santa Iracema era assim. Às seis horas da tarde tudo era sagrado. O povo parava para ligar o rádio e todo santo dia, a ladainha espalhava-se no pequeno vilarejo. As famílias crentes numa fé na cura de todas as dores. Produziam alimentos com vontade. Hortas nos quintais, folhas de alface que serviam para acalmar, couve, e muito funcho porque cólicas dos bebês nascidos ali, o chá sossegava o sono, o choro, aliviava o cansaço das mães. Vó Cândida era pura devoção. Além do terço, frequentava o pai de santo, entendia Deus como semelhança das gentes de Santa Iracema. Mal o sol se entendia pela janela, toda a vizinhança se achegava feito colcha de retalhos cobrindo a encruzilhada da vida.

Aos poucos muitas pessoas deixavam o vilarejo. Maria também.

E o tempo corria. MAS “fazer o quê”? Cada um tem um dom de ser livre, voar e, talvez, voltar. Surpreender, contar muito com poucas palavras. Sem afogar a memória.

“Bença, Vó”.

Todas as noites longe de Santa Iracema, Maria falava um tiquinho com a avó. Cândida abençoava sempre. Escondia as saudades da menina sem mãe, pai desconhecido, porém, coberta de amor pela doçura de um viver.  Com afetos e o céu alumiando, no sobe e desce de cada amanhecer. O vilarejo tomou novos ares. Pessoas novas indo embora, pessoas mais velhas segurando os nós de quem ficava.

O doce feito no tacho, a banha do porco, as hortaliças frescas nos arredores de Santa Iracema. No estalar de dedos, os anos romperam-se... Teresa entrou na história de Maria.  

Era muito tarde, quando na porta, vó Cândida ouviu três batidas. Lentamente os passos conseguiram abrir a porta de madeira.

 Maria foi assuntando sobre a visitante.

 Sabe vó, vim te apresentar , Teresa.

Sem responder com palavras, apenas o abraço foi o suficiente.

Risadas pelo ar. Jantar com sabor regado por tanta coisa gostosa.

Naquela noite, o céu tinha um azul meio sonolento. Meio cansado, talvez, anunciava um adeus.

Maria olha dona Cândida observando a doce forma daquela ligação de tantos momentos. Antes do fim, Cândida sorriu para Maria e Teresa.

Quando o sol desencantou o brilho, Santa Iracema perdeu o encanto.

Duas mulheres esperavam o trem na estação mais próxima.  

O tempo não corta tudo. Resiste a cada instante. Porque dança, enlaça, costura infinitos afetos.

Seria isso o coração pulsando? Um abraçar permeado nas expressões.

“Vó”! “Fia”!


domingo, 29 de dezembro de 2024

Naquela mesa >> Sandra Modesto

 Naquela mesa

Os dezembros não são os mesmos desde a Pandemia. No dia 31 de dezembro do ano estarrecido, corroído no vazio de muitas famílias, como cantar em coro, adeus ano velho feliz ano novo?

O ano velho levou para sempre, os que  não estarão na última festa.

Dá pra dizer feliz ano novo olhando a mesa incompleta? Cadeiras vazias, olhares disfarçados tentando os risos fracos. Porque a vovó não está ali, o avô, as tias, os tios, a amiga, o amigo.

A professora que contou histórias, as conversas marcantes, agora distantes demais.

Elas e eles viraram covas. Nas setecentas mil vidas perdidas, seria espanto, reforçar que quatrocentos mil pessoas poderiam estar vivas? Por isso meu bem, no último dia de todos os anos, recolha sua dor, não ignore a miséria do Brasil de 2019/2022. Saboreie devagar ao comer pedaços de lombo assado, lembre- se que durante o governo do inelegível, pessoas enfrentaram a fila do osso. Cataram comida no lixo.

E se puder, assuma sua estranha paixão pela vida.

Naquela mesa incompleta. O forro branco escorrendo pelos cantos.

O feliz ano novo será meio assim, implacável na canção destoada. Feliz ano novo?

Não. Cada um vai chorar em silêncio

E recolher as sobras das saudades.

Por enquanto, outono

  Os sóis dos domingos dessa estação me levam a vaguear. Visto minha calça legging, uma blusa confortável, nos pés, tênis e meias para o meu...