domingo, 22 de novembro de 2020

Mãe, eu não acredito >> Sandra Modesto

É uma conversa com o Gabriel.

_ Eu sou preta, né?

_ Você? Não, por favor, não faça isso comigo. Coloca seu braço perto do meu. Qual a cor dele?

Eu olhei, olhei, observei a não semelhança e o bate – papo rolou.

_ Mas meu pai, meus avós eram pretos.

“Frase típica de quem não tinha o que dizer”. Seria melhor eu ter ficado calada. Caramba!

_ Mãe, eu sou preto. Você é uma miscigenada, apenas. Seu tom de pele é muito claro, seus cabelos não são afros, o que significa que se você continuar com essa ideia, será estupidez.

“Mas quando eu tomo muito sol”...

_ Sei. Você fica bronzeada. Preta não, mãe. Preta nasce preta. Sofre racismo, luta para um lugar ao sol. No mundo dos brancos privilegiados. Para com isso, mãe. Eu te admiro tanto.

Meu filho foi lanchar na cozinha. Eu também. Olhei nos olhos dele. Pedi desculpas pela minha insensatez. Só não contei que sabia que eu não era preta. Mas sou, serei a mãe antirracista para sempre.

“A conversa já faz muito tempo, mas é uma crônica real, nesse Brasil PANDEMÔNIO”.

Sandra Modesto

#petiscosdedomingo #cronica #cronicadodia

domingo, 8 de novembro de 2020

Sair de manhã e tomar um sol




SAIR DE MANHÃ E TOMAR UM SOL

24 de outubro de 2020 – Recebi uma mensagem da minha prima, Gilca, que mora em São Bernardo do Campo.

Eu, acostumada com notícias tristes no ritmo do frenesi atual, já sofri um trem. “Trem” no vocabulário mineiro tem vários significados. No caso daquele dia, meu trem imaginou a estação do “ruim”.

Li. Um convite para a defesa de doutorado. Que trem bão! Por causa da pandemia a transmissão seria virtual. Agradeci, gritei, mandei emojis. Foi uma tarde feliz de sábado. Como se a vida estivesse renascendo. E a janela namorasse o interior da minha casa.

Minha família é rodeada por mulheres. Tenho primas espalhadas nas páginas de um livro, nas fotografias, na observância das conquistas.

26 de outubro às 14h, o link pra eu assistir. A transmissão via Meet, não sabia muito como era o tal meet, mas tenho o aplicativo no celular. Pedi ajuda e entrei.

Minha prima sendo avaliada pela banca de professores, uma plateia do lado de cá. Eu me emocionando feito menina grande.

A Gilca foi aprovada. Tese: Fundamento Filosófico da Pedagogia Multirracial: Propostas dos Movimentos Negros do Rio de Janeiro e Santa Catarina (1980- 2000)

 Tenho uma prima negra, linda, batalhadora, e a partir daquele momento, Dra.

Este título significa mais que uma conquista, é muito trabalho árduo e ternura.

Houve um momento em que eu chorei ao assistir à cerimônia. A Gilca disse...

“Eu passei meses e meses me dedicando ao trabalho, foram noites e dias pesquisando, agradeço aos meus orientadores, e ofereço meu título, à minha mãe”. “Ela tem 87 anos, não teve oportunidades de estudo, mas sentava ao meu lado e perguntava sempre se estava tudo certo”.

Embargou a voz...

 “Eu só sei que estou precisando sair de manhã e tomar um sol. Há muito tempo eu não vejo o sol.”

Eu aplaudi. Ninguém ouviu porque meus aplausos foram sem o celular.

Aprendi que minha prima tem razão.

É preciso sair de manhã e tomar um sol.

Sandra Modesto

Biblioteca virtual do Elicer Minas

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