quinta-feira, 26 de março de 2020

QUANDO O OUTONO CHEGOU >> Sandra Modesto

Imagem: Pixabay


QUANDO O OUTONO CHEGOU
Fiquei nos últimos dias, lembrando o que eu ia fazer no outono.
 “Via-me nas ruas, com meus óculos escuros comprados em dez prestações”.
 Na minha rotina tão sonhada caberia tudo! Voltaria com minhas caminhadas ao ar livre. Visitaria bibliotecas. Também iria numa revistaria comprar exemplares do mês.
Minha vida no outono seria totalmente ativa. Enriquecedora.
Mas as águas de março romperam tudo.
Mal chegou o outono e tudo ficou nublado.
Na minha cidade, ruas vazias. Ninguém pega a mão de ninguém, o cumprimentar diário típico dos mineiros,  desapareceu.
Dentro de casa, uma rotina abrupta, estranheza em tempos hostis. Um tempo doentio enfiado na história da gente. Agora é diferente, agora estranheza, agora com ponto de exclamação!
Pego roupas no cesto coloco na máquina de lavar. Até a máquina resolve parar. Doze anos de uso. Coitada, no barulho ensurdecedor, leva o dia inteiro para o processo completar a lavada.
Preciso comprar uma máquina nova.  Não posso escolher na loja porque está fechada. A fatura do cartão de crédito me impede de uma compra virtual.
Os salários estão arrastados. As pessoas estão em completa histeria. Surto. Somos três nessa casa e as tarefas estão divididas.
Meu cachorro late pouco. Parece triste. “Tudo mudou”.
De repente eu tive que descobrir dentro de mim uma força crucial. Sempre fui caseira, mas uns barezinhos com o marido, rever os amigos, isso sim. Nada mais...
 Meu tempo está bem longe dos meus sonhos. Mas seja lá como for se é para o vírus sumir, o jeito é encarar o novo lugar que por ora, mora no meu cotidiano. Não sei até quando. Não sabemos. O meu cuidar é meu. Tenho quase sessenta anos, estou no linear do grupo de risco.
 Mas nas favelas das cidades grandes, sem água, sem nada, os riscos multiplicam - se. Gente que dorme pelas ruas, não tem comida, nem água, nem sabão. Sei que sou uma privilegiada. Engulo minha insensatez. Choro. Só.
Sigo por aqui caminhando pela casa, arrumando livros na estante, lendo, vendo alguns filmes. Há partes boas na minha história nova.
A vida não é um outono imaginado. Enfio goela abaixo um ciclo de surpresas inesperadas.
Aguardo boas novas á espera do inverno.  Quem sabe.

*Crônica publicada no Jornal de Caruaru*
https://jornaldecaruaru.com.br/2020/03/cronica-do-dia-quando-o-outono-chegou-por-sandra-modesto/

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