sábado, 5 de fevereiro de 2022

RETROSPECTIVA >> Sandra Modesto

 Meu pai me chamou e disse que estava com câncer. Eu tinha que contribuir com o orçamento familiar. Nossa vida sofreria mudanças daquela hora em diante.

Fiquei meio assustada, mas, lá fui eu, ser “alguém” na vida. O trabalho era em uma empresa de telefonia.

Entrevista, uma prova de português e fui admitida.

Sempre gostei de sapatos. Usei o primeiro par de sapatos de salto alto aos 13 anos. Levei um tombo na Rua 22.

 Com o meu primeiro salário, adivinha o que comprei? Um par de sapatos de grife.

O tempo avançou um pouquinho e minha vida como professora começou aos vinte e um anos. Primeira gravidez, escola de periferia, crianças em fase de alfabetização.

A escola era muito distante da minha casa. Não havia ônibus e eu ia e voltava a pé, debaixo de um sol escaldante, e a barriga crescendo, crescendo...

Com a gravidez no final, a diretora me trocou do turno vespertino para o noturno.

 Mas o contrato na escola acabou. Voltei dois anos depois. Trabalhando com ensino fundamental dois e ensino médio.

Hoje consigo lembrar-me vários momentos. Um deles me entristeceu muito. Aconteceu numa cela de uma penitenciária quando exercia o magistério simultaneamente com a profissão de repórter de uma TV local. Fui cobrir uma reportagem na cadeia:

– Professora, professora, você lembra de mim?

– É ela! Ficou famosa hein, professora?

Cheguei mais perto. Recordei- me que tinham sido meus alunos. Senti uma mistura de revolta, desespero, impotência.

“Então eu fui professora deles e eles vieram parar aqui? Eu não servi pra nada”...

Não, não era isso. O problema era a desvalorização da Educação. Aqueles alunos na cadeia eram vitimas da sociedade desigual, falta de estrutura familiar. Uma série de questões graves.

E Há três anos, tudo piorou. Pátria amada Brasil”. Inferno!

 

Outubro de 2002...

Eu trabalhava em uma escola da periferia com minhas quatro turmas dos sétimos e oitavos anos, quando idealizei um projeto literário envolvendo o centenário de Carlos Drummond de Andrade. Sem recursos tecnológicos e falta de livros literários na biblioteca, reuni a turma e contei quem tinha sido Drummond, recitei trechos de poesias. Para fechar a parte principal, ensaiamos um musical baseado no poema, “José”.

Tive a ideia de sugerir a pauta ao canal de TV. Repórter, cinegrafista, microfones, entrevistas. A matéria veiculou em rede regional, estadual, em um canal fechado de grande audiência. Momentos de aplausos e sorrisos da equipe pedagógica. Alunos com olhos brilhando.

Até hoje, reencontro muitos que se recordam de mim, a gente conversa, e eu fico sabendo que terminaram os estudos, alguns fizeram cursos universitários de música, teatro, pedagogia ou cursos técnicos. Estão aí, buscando dignidade.

“AOS ESFARRAPADOS DO MUNDO E AOS QUE NELES SE DESCOBREM E, ASSIM DESCOBRINDO- SE, COM ELES SOFREM, MAS, SOBRETUDO, COM ELES LUTAM.” Paulo Freire em PEDAGOGIA DO OPRIMIDO.

 

 

 

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